Processo civilizatório versus concentração ilimitada da riqueza e mando na sociedade e no Estado

Nelson Rodrigues dos Santos

 

Introdução

 

Neste texto destacamos em dois tópicos, informações e questões sobre os sujeitos políticos que disputam o rumo das sociedades, tensionando-as e não raro simulando ameaçadoras prospecções, como no atual momento brasileiro. Na condição de amador em Ciências Humanas e Economia Política, aventuramos na busca de referências para buscas e atuação mais seguras nas políticas sociais. No Tópico I consideramos, em dez enfoques objetivos, o quadro global e nacional por onde vemos as relações Sociedade-Estado-Mercado, e no Tópico II, apresentamos treze desafios/reflexões de ordem política, doutrinária e estratégica, agrupados sob três temas: o do pacto social projeto de nação e globalização, o das atuais inseguranças na representatividade e no espectro ideológico, e o das alternativas á globalização neoliberal. Em outro texto – ‘SUS: a dura luta contra a hegemonia neoliberal’ – também no site do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes), visamos ilustrar com a política de saúde, a nosso ver, paradigmática dos descaminhos políticos na área social.

 

Tópico I – Relações sociedade/estado/mercado: no mundo e no Brasil

 

Neste tópico seguem dez considerações com vistas a amplo debate de projeto de nação e construção de um pacto social mais avançado e civilizado, vis a vis a democratização do Estado. Essas considerações seguirão a sequência da globalização financeira até o estrangulamento das nossas políticas públicas de desenvolvimento e direitos sociais, isto é, do geral, atribuindo significado explicativo e crítico ao particular.

 

1ª Consideração:

Início da Acumulação Capitalista Insaciável: Referência Sintética. As revoluções industriais nos séculos XVIII e XIX na Europa e EUA derrotaram a hegemonia feudal milenar que vigorava na Europa. Historicamente a acumulação do capital e seu poder, é registrada em entrepostos de trocas comerciais, remonta á milenar idade média, com acumulação intensiva, ilimitada e insaciável de patrimônio, capital e riqueza; Jacob Fugger, banqueiro de Veneza (1459-1525) em plena Renascença obteve do papa Leão 10º a derrubada do veto católico á usura, passando a redação para: ‘lucro adquirido sem trabalho, custo ou risco’ (características pessoais do banqueiro segundo sua biografia ‘O Homem mais Rico que já Viveu’: exercício da especulação, obsessão em acumular riqueza, intersecção dinheiro-poder e ganância sem limites). Com as revoluções industriais o capitalismo liberal gerou acumulação de capital e riqueza intensiva, ilimitada e insaciável, com extrema concentração nos mais ricos, grande predominância do capital e patrimônio sobre a renda da produção, crescente colisão entre os mais ricos e as massas trabalhadoras, e de interesses ‘vitais’ entre países europeus, no século XIX e início do XX. Thomas Piketty e equipe demonstraram em sua reconhecida pesquisa publicada em 2013, com base no estudo dos dados desde o séc. XIX, sobre os 1% de pessoas mais ricas, entre outras variáveis, o crescente e explosivo predomínio da receita de capital sobre a renda do trabalho. Deu-se a primeira Guerra Mundial (1914-1918) que arrasou a Europa humanamente e, no plano da História e Economia Política, a revolução socialista na Rússia que nucleou a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS).

 

2ª Consideração:

Freio Sistêmico na Acumulação: Raízes do Estado de Bem Estar Social.  A primeira guerra mundial demarcou início de decadência no liberalismo, com a implementação gradativa nos países europeus, de análises, formulações e preceitos para pactos sociais mais avançados que foram sendo gestados ao longo dos anos e décadas: propunham avanços na relação do tripé Democracia/Estado/Mercado. Eram pauta a tributação dos mais ricos, o investimento público para reduzir as crises cíclicas da acumulação do capital, o rentismo sob controle da produção e do trabalho, e os direitos sociais das classes trabalhadoras mais protegidos. O keynesianismo (John Maynard Keynes) aglutinou e articulou as formulações e projetos voltados para a minimização dos riscos sociais do capitalismo, mas sem o objetivo de superá-lo.

 

3ª Consideração:

Expansão e Consolidação dos Estados de Bem Estar Social.  Variados formatos ‘keynesianos’ batizados de Estados de Bem Estar Social (EBES) e Social-Democracia, foram sendo implementados segundo as realidades históricas na Europa (nórdica, central e mediterrânea) e nos EUA, nos anos 30, com o ‘New Deal’ keynesiano, que apontou a saída da grande crise do liberalismo de 1929. Não reuniram contudo, condições para evitar a eclosão da segunda guerra mundial (1939-1945) mais devastadora que a primeira. Somando-se no pós-guerra a agudização da tensão capitalismo x real-socialismo (antiga URSS),  as estruturas social-democratas na Europa e Japão são reforçadas no seu desenvolvimento, no distributivismo e na participação social, no contexto da Reunião de Bretton Woods em 1944 e o Plano Marshall. Foram influenciados outros países, levando o EBES a experiência mundial historicamente relevante por quase um século, até nossos dias. Na Europa mediterrânea, Portugal e Espanha somente nos anos 70, com a queda de ditaduras prolongadas e medievais, implantaram com sucesso seus EBES objetivando ‘tirar a diferença’ em poucas décadas. Quanto ao Brasil vale lembrar que os regimes autoritários e populistas de nossa história conviveram com buscas de caminhos para avanços episódicos no pacto social e construção do EBES brasileiro como nas legislaturas de 1955 a 1963, com metas  e projetos nacionais  amplamente debatidos e desenvolvidos no então Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), e na então Frente Parlamentar Nacionalista, como a Industria de Base, Energia elétrica, Extração e Refino do Petróleo, Reformas de Base(urbana, agrária, da educação, da saúde, tributária e outras). É oportuno lembrar que essas buscas de caminhos foram historicamente precedidas pela nossa revolução industrial tardia nos anos 30 influenciada por países europeus e pelo New Deal dos EUA, rompendo com as oligarquias dominantes, abrindo novo período civilizatório, com avançada legislação trabalhista em 1943 e previdenciária em 1960, mas ainda mantendo grande dependência ás oligarquias exportadoras primárias na estrutura e poder do Estado.

 

4ª Consideração:

A Globalização do Capital Financeiro. Em meados do século passado, poucas décadas após a segunda grande guerra mundial, a acumulação histórica do capital financeiro especulativo retoma seu crescimento intensivo, ilimitado e insaciável, levando à grande crise global dos anos de 1980, desencadeada pela crise do petróleo nos anos de 1970. Torna-se clara a retomada da sua hegemonia: o capitalismo turbinado pela globalização e pelo colapso da experiência do ‘real-socialismo’ da antiga URSS, explicita o objetivo de não mais financiar os EBES e desviar o surgimento de outros (vide governos Thatchter e Reagan,1979,1980). Configuram-se nos anos de 1980, o ‘neoliberalismo’ e o ‘consenso de Washington’, que estabelece a ‘financeirização dos orçamentos públicos’ que: a) impõe autonomia aos Bancos Centrais (BCs), b) estabelece que somente o mercado e os BCs fixem as taxas de juros e demais serviços da dívida pública, cujos valores, por definição, deixam de ser objeto de austeridade governamental, c) define as despesas públicas primárias (investimentos em infraestrutura, direitos sociais etc.) como as únicas sujeitas à austeridade (serem reduzidas pelo governo), e por consequência o déficit primário, quando as despesas  primárias são maiores do que resta á receita  após o pagamento dos juros e serviços da dívida, d)estabelece o significado e papéis do capitalismo central e do periférico/dependente na atual globalização,  e)assume que a maior ameaça ao desenvolvimento contemporâneo é o EBES e o keynesianismo, e  f)propõe reforma do Estado com enxugamento das estruturas e orçamentos sociais, substituindo-os pelo Estado mínimo, com programas público-privados de baixo custo, compensatórios focais e marginais. Simultaneamente á exponencial acumulação financeira especulativa, foi desenvolvido inusitado salto tecnológico, de produtividade e de processos de trabalho, com internacionalização e diversificação de cadeias produtivas e de consumo, com mercados financeiros e de consumo globalizados e ativos 24hs/dia, entre outros campos, a informática, telecomunicação, química fina, e genética. Retomando à globalização financeira, a respeitada OXFAM, confederação de organizações de pesquisa, estudos e atuação nas áreas econômica e sociais, fundada em Oxford na 2ª guerra mundial, confimou que em 2016 os 1% mais ricos do mundo passaram a concentrar 50% das riquezas do planeta. Mais recentemente, com base em dados do banco Credit Suisse e revista Forbes, identificou que os oito homens mais ricos do mundo detém mais dinheiro que a metade mais pobre do planeta (3,6 bilhões de pessoas).  A União Europeia que surgiu para ‘nivelar por cima’ seus EBES e não voltar a ser palco de nova guerra mundial arrasadora, agora sob pressão neoliberal vem cedendo para a ‘troika’: FMI/BC Europeu/Comissão Europeia; os países mediterrâneos Portugal, Espanha e Grécia, vem sendo os mais penalizados até o momento. No Brasil, por ironia histórica ou não, enquanto a sociedade nos anos 80, com o debate constitucional tentava novamente o rumo do EBES, os ‘países centrais’ sob a hegemonia do capital financeiro globalizado, articulavam o consenso de Wahington neoliberal, que aqui aportou em 1990. Assim nossa busca por um EBES foi interrompida por dois golpes: em 1964 com ditadura civil-militar, e nos anos 90, sob democracia liberal e incontrolável hiperinflação anterior, a privatização de estatais, a desindustrialização, os juros e dívida pública crescendo geometricamente e para pagá-los, a forte financeirização do orçamento público. A OXFAM com base nas mesmas fontes já citadas, identificou as seis pessoas mais ricas do Brasil, cujas riquezas somadas equivalem á riqueza somada da metade mais pobre da nossa população(mais de cem milhões). Certamente hoje, a busca de saídas civilizatórias tornou-se mais complexa, em alguns aspectos ainda confusa, além do simplismo ‘neoliberalismo puro’ x ‘EBES puro’, mas permanece o desafio central da disputa na sociedade e Estado, dos lugares onde são decididas a distribuição e utilização da riqueza pública.

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