Processo civilizatório versus concentração ilimitada da riqueza e mando na sociedade e no Estado

Tópico II – Temas candentes para posicionamento

Neste tópico serão abordados dois campos de desafios e reflexões, que julgamos impostergáveis para formulação de estratégias, ainda que sem respaldo de conhecimentos disciplinares mais sistematizados e aprofundados.

 

Primeiro Tema

Pacto Social, Projeto de Nação e Globalização: 

Desafio 1  –   Porque e como se processou e processa a globalização neoliberal com concentração exponencial e insaciável conforme exposto na 1ª, 4ª e 5ª considerações constantes no Tópico I ?  É característica intrínseca incontrolável do ser humano? Ausência de controles e limites com anuência das grandes maiorias nas sociedades? Inclusive nas mais civilizadas que debateram e construíram seus pactos sociais mais civilizados durante o século passado? Se há grande crise e declínio da globalização neoliberal, retornam as soberanias nacionais/nacionalismos? Engendram-se construção de outras alternativas de  globalização, neokeynesianas ou não?

Desafio 2 —  Simultaneamente ao avanço e radicalização da globalização neoliberal é constatada alarmante agressão/deterioração da natureza em nosso planeta e do distributivismo social, com prospecções ainda confusas e temerosas, atingindo também os países ‘centrais’. Paralelamente ao endeusamento ortodoxo e despótico das ‘leis científicas da Economia’ que submetem poderes executivos, legislativos e as sociedades, por outro lado vem sendo renovadas análises lembrando que a Economia não é campo das ciências exatas, e sim, expressão numérica das estratégias e exercício de poder na sociedade e Estado, onde são decididas a distribuição e utilização do capital e riqueza: campo das ciências sociais e políticas. Reconhecidos estudiosos e pesquisadores desconhecem qualquer credibilidade científica nos postulados da ortodoxia da escola econômica neoliberal, entre eles, Pedro Paulo Z. Bastos e Luiz G. Belluzzo que apontam: a)o déficit público resulta da queda da arrecadação e não da alardeada gastança com a sociedade, b)a inflação não resulta da alta demanda pública a ser controlada com elevação de juros;  a elevação de juros é que determina a elevação da dívida pública, c)os custos da dívida exigem recursos cuja origem vai caindo com os cortes nos gastos públicos que geram o PIB, d)até o FMI preconiza estimular o PIB com a queda dos juros, melhorando a relação dívida-PIB, e)o gasto social é multiplicador acima de 1,5, muito maior que o multiplicador de 0,8 do pagamento dos serviços da dívida, e f)o maior risco da democracia brasileira tornou-se a ditadura de tecnocratas com retórica cientificista, com base em argumentos desatualizados empírica e teoricamente, visando a reversão do pacto social inscrito na Constituição de 1988.

Desafio 3 – As extensas e complexas estratificação social por níveis de renda e relações e processos de trabalho, apontados nas considerações oitava e décima do Tópico I, nos convida a conjecturar sobre quais segmentos sociais estão mais diretamente dependentes do processo produtivo e distributivo de bens e serviços, e potencialmente interessados nas lutas pela hegemonia desse processo. Uma primeira hipótese de ‘linha de corte’ para vislumbrar o tamanho potencial desses segmentos, pode nos levar inicialmente aos 91% da população incluindo a classe média-média. São todos trabalhadores nas mais diversas relações de trabalho e estratos sociais. Em principio, grandes beneficiários de um efetivo desenvolvimento sócio-econômico, a ser amplamente debatido e assumido  pela sociedade. Na construção desse pacto social, seria pensável um processo social e regulatório eficaz, com os fundos de investimento (públicos e privados) destinados exclusivamente ao processo produtivo? Com cronograma de desembolsos atrelado a planejamento e controle participativo dos pequenos e médios empresários produtivos dos assalariados e dos autônomos, sem desvios para aplicações especulativas, dentre elas, o rentismo da dívida pública? Por certo, sendo historicamente viável, esse pacto e sua construção não aconteceriam em curto prazo, nem seu avanço deixaria de considerar, no processo, a adesão daquelas grandes empresas ainda com lucratividade dependente do processo produtivo, e não do mercado especulativo de capitais com depósitos em paraísos fiscais. Do outro lado da ‘linha de corte’ estariam os 1% estudados por Piketty e potencialmente por volta de 5% contíguos aos 1% (incluindo a parte do alto empresariado produtivo, que  substituiu o reinvestimento do lucro empresarial  na própria empresa, por aplicações ‘mais vantajosas’ na especulação. Pressupostamente, a lógica desse leque social repete-se com variações próprias nos demais países, incluindo os desenvolvidos, lembrando que a maior parte destes, construiram pactos sociais e projetos de nação mais avançados em torno do EBES, desde o século XX,  hoje sob grande fustigação pela globalização neoliberal.

Desafio 4 – As conjecturas expostas nos dois itens anteriores podem levar a indagação simplista: – se por várias décadas os detentores do grande      ‘buraco negro’ sorvedouro global da renda e riqueza do processo produtivo, não passam de 5% da população, porque os 95% restantes, constrangidos na disponibilidade do seu trabalho produtivo, com crescente mal-estar social (em diferentes proporções para cada classe e estrato social), ainda não produziram efetivo freio e limite na especulação, com redistribuição para a produção e direitos humanos universais, acordada nas sociedades e nações? Exemplos de ângulos para reflexões: a) ao lado da exponencial concentração de renda e riqueza, uma também exponencial acumulação de saberes, estratégias e tecnologias de exercício de poder na sociedade e no Estado, por intelectuais orgânicos do neoliberalismo, por expertise midiática, por narrativas ‘científicas’ da ortodoxia econômica do ‘deus mercado’, b) acumulação de estratégias especiais de exercício de poder de Estado, como cooptações de lideranças sociais, no Legislativo e Executivo,  construção do perfil da ‘nomenklatura’ nos aparelhos de Estado, entrega de verdadeiros nacos do Estado para lobies de maior peso e continuidade/reprodução de projetos de poder, e c)articular no médio e longo prazo a alternância de estratégias de maior arrocho na economia e direitos sociais(prussianas/populistas autoritárias), com estratégias de distensão social e projetos compensatórios(ampliação do mercado de consumo/populistas tradicionais).  É de se lembrar que essa continuidade se dá também nas sociedades que constroem desde o século passado, reconhecidos e avançados projetos de nação com EBES, contudo, com sua construção constrangida ou interrompida ou até distorcida, há quase quatro décadas, sem potencial para avançar em alternativas efetivas á globalização neoliberal, democratização do Estado,  participação social no processo produtivo, e no projeto de nação e sociedade. De qualquer modo no Brasil, com base nas informações expostas, principalmente nas considerações quarta á décima do tópico I, enfatizamos a importância de serem estimadas as forças e aspirações de quais segmentos da sociedade que, somados, tem potencial para efetivar alternativas de projeto de nação e sociedade. Comentaremos esse ângulo no segundo campo de desafios e reflexões deste Tópico II. Por final destacamos a grande importância do aprofundamento e debate dos estudos, análises e prospecções no âmbito das ciências humanas, sociais, políticas e história, das crises cíclicas e esgotamento do capitalismo.

Desafio 5 — Trata-se de circunstância político-institucional tipicamente brasileira, cognominada ‘presidencialismo de coalizão’, que a nosso ver carrega até hoje parte fundamental das causas e rumos da grave crise sócio-política-institucional que passamos. Lembramos de início nossas consolidadas heranças históricas republicanas como o presidencialismo, o multipartidarismo, o federalismo, e o bicameralismo (Câmara e Senado) com representações proporcionais para sociedade extremamente diversificada. Lembramos também que as coalizões de partidos sem perda das identidades partidárias, com vistas a compor o Executivo (no parlamentarismo), ou produzir e estabilizar a governabilidade(no presidencialismo), fazem parte dos inúmeros processos e procedimentos do exercício democrático de representação e poder republicano. No Brasil as coalizões no Congresso Nacional já nos anos 1930(Estado Novo), processavam-se sob hegemonias históricas e conjunturais: oligarquias rurais, indústria de base, alinhamento á 2ª guerra mundial, campanha do petróleo, relação com o FMI, populismo, anti-populismo, e, nas legislaturas de 1955 a 1963, o amplo e crescente debate sobre ‘metas nacionais’ e ‘reformas de base’, no rumo do EBES,  já referida na 3ª consideração do Tópico I. Nessa conjuntura de 1955 a 1963, no Congresso Nacional, ao lado das maiorias fisiológicas ou alinhadas a setores dominantes, compunham também, ainda que minoritariamente, parlamentares de cunho republicano desenvolvimentista mais consequente, alguns com traços de verdadeiros estadistas: jurisconsultos, literatos, jornalistas, educadores, lideranças trabalhistas, positivistas da época, socialistas e outros, de extração pluripartidária, ascultando as maiorias excluídas e embrionando a busca de um projeto de nação republicano mais avançado. No exercício parlamentar essas minorias, junto ou não a projetos progressistas do Executivo, por vezes conseguiam ampliações e aprovações de importantes avanços, como na industrialização, no petróleo, no ensino público, na legislação trabalhista/ previdenciária e outras. Pode-se inferir que até 1963, o conjunto dos parlamentares atenuava mas não anulava o significado histórico do Legislativo, de ‘caixa de ressonância da sociedade’.  Em 1964 o poder Executivo da ditadura civil-militar passa a legislar o que julgava estruturante, por meio de atos institucionais, decretos-lei, poder de veto parcial ou total na aprovação de leis, reformas constitucionais etc.; o Congresso Nacional, por vezes simplesmente fechado, passou de legislador a homologador do Executivo, e os parlamentares que mais defendiam a democracia e seu direito/dever de legislar, perderam os mandatos ou foram presos ou mortos ou desaparecidos. Porque tamanha radicalidade?  Nos vinte anos da ditadura, retirando da sociedade, toda uma geração de parlamentares e seus sucessores a cada 4 anos? E anulando/zerando o retorno ou reconstrução do perfil anterior do Legislativo nacional? – Entre várias análises, destacamos a superposição da fase final da nossa ditadura com a formulação, pelo capitalismo central, do consenso de Washigton/globalização neoliberal, e o alto significado geopolítico do Brasil, caso viesse efetivar seu desenvolvimento para o EBES. Há a análise de que nas negociações da transição da ditadura para a democracia liberal, um dos acordos foi um conjunto de medidas radicalmente impeditivas de retomada de duas correntes trabalhistas no quadro partidário, na estrutura sindical e no Congresso Nacional: a socialista e a brizolista. Apesar da desestruturação e aviltamento por 20 anos, os parlamentares sobreviventes em 1987/1988, sob explosiva e consistente manifestação da sociedade em todo o território nacional, debatem e aprovam a Constituição cidadã/88 de cunho de EBES. Paralelamente eram engendradas pelos operadores do consenso de Washington no Brasil, estratégias no rumo do capitalismo periférico dependente. Vieram a prorrogação por um ano do mandato presidencial e a reprodução, já na democracia liberal, das prerrogativas do Executivo para legislação estratégica e estruturante, agora por Medidas Provisórias(com emendas parlamentares fisiológicas e lobistas negociadas previamente) e Projetos de Emenda Constitucional (PEC) formuladas pelo Executivo (também com emendas parlamentares fisiológicas e lobistas  negociadas previamente). Paralelamente, o financiamento das campanhas eleitorais parlamentares, a execução orçamentária ministerial e das estatais e a indicação para cargos de primeiro e segundo escalão, acordados previamente com o capital e alto empresariado, passaram a reproduzir por seguidas gestões, um legislativo nacional com coalizão segura de grandes maiorias em torno e submissas ao poder Executivo. Permaneceria superada ou minimizada, a prerrogativa histórica do Legislativo vir a ser a caixa de ressonância da sociedade: nascia o atual presidencialismo de coalizão.

Desafio 6 — Nos anos 90, em substituição da incontrolável hiperinflação anterior, o presidencialismo de coalizão acima comentado, viabilizou a privatização de estatais estratégicas para nosso desenvolvimento, a desindustrialização, a alta geométrica dos juros e dívida pública, e a financeirização do orçamento público, conforme assinalado na 4ª consideração do Tópico I e a continuidade da alarmante concentração de renda e riqueza em nossa sociedade. Rejeitado pela opinião pública na campanha de 2002, o governo é substituído. O mesmo presidencialismo de coalizão, a partir de 2003, com o comercio externo superavitário pelo boom das commodities, viabilizou impactante redistributivismo com base na elevação da capacidade de consumo: transferências diretas e correção do salário mínimo acima da inflação, com importante expansão do mercado interno. Avanços esses, acompanhados de forte subsídio público ao mercado em áreas sensíveis como saúde e ensino médio e superior, e continuidade dos mesmos níveis de acumulação financeira especulativa e concentração de renda e riqueza do período anterior. Foi tornando-se clara a noção de que o presidencialismo de coalizão implica em projeto de poder ou de governo em nome da governabilidade, opondo-se ao projeto de nação e de sociedade a ser amplamente debatido. Uma questão fundamental ainda em debate é a previsibilidade do esgotamento da capacidade do gasto público nacional primário, tendo de um lado os pétreos serviços da dívida pública, de outro lado as políticas públicas constitucionais, e como se não bastasse, o grande butim dos  crescentes e bilionários contratos públicos de grandes empresas privadas, com bilionárias e crescentes propinas para partidos, coligações, altas autoridades públicas do Executivo e Legislativo, irrigando vultosas campanhas eleitorais, aplicações no mercado internacional de capitais, depósitos em paraísos fiscais, renuncias fiscais, etc. A compreensão dessa previsibilidade de esgotamento passa também pela nova lógica e estruturação do Executivo e Legislativo, construída pelo presidencialismo de coalizão, que rompe frontalmente com o caráter republicano de Estado, por drenar crescente, sistêmica e estruturalmente, há 26 anos, massa suicida  de recursos públicos para fins privados anti-públicos. Por outro lado, a inevitável diversidade de motivações e tendências no interior da nossa Justiça e Ministério Público, não desfaz o perfil dominante dos juízes e procuradores envolvidos nas operações anti-corrupção: há oportuna análise apontando que em regra são filhos da transição ditadura/democracia, da classe média, frequentemente de famílias de servidores públicos e não foram atingidos pela satanização do Estado: apesar da tendência minoritária calcada no moralismo superficial alienado e temeroso, movem-se em regra pelo resgate e reestruturação do Estado de Direito. Não deve ser negado apoio á continuidade dos esforços, mesmo que limitados somente á questão de valores éticos de ‘casos’ de membros de partidos, do Executivo, do Legislativo, e das empresas, de corruptos e corruptores, que tem ampla aprovação em todos os segmentos sociais. O apoio a esses esforços, deve qualificá-los no sentido de não repetirem o fracasso das ‘Mãos Limpas’, devendo por isso, ser acompanhados de insistente debate político que os comprometa publicamente e prossigam no sentido da ‘re-publicanização’ do Executivo, Legislativo e Judiciário, com revisão do presidencialismo de coalizão. Por exemplo, a luta política por reforma dos critérios, lógica e transparência das representações na sociedade e governos, e das prestações de conta e penalizações em tempo real. Cabe registrar que, se o Judiciário e Ministério Público não vem sendo desestruturados pelo presidencialismo de coalisão como o Executivo e Legislativo, carregam no entanto, fortes distorções elitistas e corporativas de caráter anti-republicano, resistentes á maior transparência e maior controle democrático: seu teto salarial legal é o salário dos ministros do STF (atualmente,R$33.700,00). Por meio de autonomia financeira corporativa dos altos colegiados e tribunais (STF,STJ,CNMP,TCU,STM, e TJ estaduais), inúmeros adicionais são criados com incorporação ao salário-base, resultando remuneração mensal final que pode chegar ao dobro do teto, o que se estende ás aposentadorias, como no caso dos desembargadores de vários estados. Outro abuso é referente a viagens internacionais financiadas pelo orçamento público, em voos de 1ª classe até 2015: só o TCU respondeu nesse ano por mais da metade dessas viagens, com dois ex-presidentes desse tribunal, viajando mensalmente ao exterior, e um ministro do STF fazendo 13 viagens internacionais em 2015. Por final, deve ser registrado que também foi desconsiderado o caráter sabidamente reversível da inclusão social quando impulsionada quase somente pela elevação do poder de consumo, mesmo que tão bem reconhecida e justamente festejada por enorme leque de estratos sociais. Obviamente, essa desconsideração está estendida á  construção apenas compensatória e focal das políticas públicas constitucionais de direitos sociais,(estruturantes dos aparelhos de Estado), incluindo projeto desenvolvimentista de industrialização com amplo debate nacional. Mal comparando, um processo similar ao de um boneco inflável vistoso, mas com pontos fracos no invólucro: murchará com o rompimento em um ou mais pontos, mas se o preenchimento for com substancias e estruturas resistentes e duradouras, mesmo que mais demorado e trabalhoso, não murchará. Várias análises coincidem para os momentos mais propícios ao apoio social para a segunda opção: a campanha eleitoral de 2002/plano de governo em 2003, ou então por volta de 2008, com apoio ao governo de 80% da opinião pública, com o ‘boneco inflável ainda sem ter vazado, cheio de gás’.

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