Processo civilizatório versus concentração ilimitada da riqueza e mando na sociedade e no Estado

Segundo Tema

Atuais inseguranças da representatividade e do espectro ideológico

Desafio 7 – Considerando a elevadíssima concentração de renda e riqueza  exposta no Tópico I deste texto, constata-se relação direta com o enxugamento do poder de consumo das maiorias populacionais, inclusive as camadas médias, o que piorou a partir da crise/2008, atingindo também os países europeus e os EUA, com crescente mal estar e tensão social. Acresce nos países com EBES, variados graus e formas de restrições á proteção social de direitos básicos, induzidos pela ‘troika’ (BC europeu, FMI e Comissão Européia, sob pressão da globalização neoliberal) e com concessões dos governos social-democratas e crescente decepção e intolerância nas sociedades e movimentos sociais e políticos. Os programas dos partidos políticos e os de governo passam cada vez mais pelo crivo do mercado globalizado, há aparente esvaziamento das políticas de massas pós-industriais e queda da representatividade/legitimidade nos movimentos sindicais e nos poderes legislativo e executivo. Passam a ser substituídos em vários graus por órgãos técnicos que se dizem apolíticos mas assumindo decisões políticas cruciais como os BCs, Ministérios da Fazenda, FMI, Comissão Européia, etc.  Movimentos pela saída (parcial ou total) do Mercado Comum Europeu, pelo retorno aos nacionalismos, por eleger a direita ou esquerda mais fundamentalista ainda que minoritárias, parecem expressar até o momento, temerosos oportunismos e mobilizações   por essas minorias,  do que tendências conscientemente assumidas pelas maiorias.  Aí estão os movimentos e protestos sociais e eleitorais na Inglaterra (Brexit), França, Itália, Alemanha, Austria, Polonia, Hungria, Turquia e EUA(cotejo Sanders/Hilary/Trump). Essa delicada conjuntura de tendências se dá no Brasil com características próprias: o crescente mal estar social pela baixa implementação das políticas sociais constitucionais e os primeiros escândalos do mensalão, foi em grande parte atenuado pela euforia da elevação do poder de consumo de grande parte dos mais pobres e classe media baixa, assim como crescimento de investimento maior que o de consumo, processo que começou a findar entre 2011/2013 com o esgotamento do ‘boom das commodities’/superávit no comércio externo. As grandes manifestações de 2013 vão dos mais pobres ás camadas médias, explicitam as precárias políticas públicas nos transportes urbanos, saúde, educação, segurança e outras, com evidente significado de alerta da sociedade ás suas representações nos partidos e no Estado, acerca do esgotamento da etapa de inclusão ancorada somente no consumo. A chocante insensibilidade das representações ‘evoluiu’ em 2014 para a canalização/cooptação das insatisfações sociais nas duas campanhas, a da situação e a da oposição na disputa eleitoral presidencial, de baixíssima ética política, financeira e da  marquetagem. Em 2015 tornava-se claro que o exaurimento da inclusão somente pelo consumo, estendia-se ao exaurimento da capacidade do Estado, já com a receita em retração, continuar financiando simultaneamente, a acumulação e concentração intensivas, ilimitadas e insaciáveis de capital especulativo, as faturas do monumental e crescente butim no orçamento público por crescentes nacos pluripartidários da situação e oposição no Legislativo, Executivo e das grandes empreiteiras, além da inclusão dos mais pobres pelo consumo, redundando no grande e incontrolável desajuste fiscal de 2015/2016. No plano político a crise de representatividade atingiu piores níveis nos poderes de Estado, nos partidos e na supraestrutura sindical, esta, em relações particularistas/promíscuas com o Fundo Sindical, Fundos de Pensão, Fundo Previdenciário do INSS e outros, caracterizando ‘nomenklatura’ promíscua estatal-sindical, parte do nosso presidencialismo de coalizão. De qualquer forma, o ainda confuso desenvolvimento da grave crise de representatividade alberga mais dois rumos: a) continuidade ilimitada da elite financeira e social, restando para a sociedade, sobreviver na competitividade de um mercado excludente implacável, e b) insistir na construção de  alternativas no processo civilizatório com amplo debate sobre o sentido de vida no plano pessoal, gregário, social e pluralista.

Desafio 8 – A crescente crise de representatividade constatada no mundo ocidental, e consequente declínio de atores políticos do ‘establishment’, vem criando crescente vazio, e seu preenchimento pelas maiorias sociais com novos projetos de nação, provavelmente não desenvolverá em prazo curto. Também aparentemente, esse vazio pode estar favorecendo ‘preenchimentos emergentes’, pela direita radical oportunista como nos EUA e vários países europeus, e também pela esquerda radical ou ortodoxa, como na Grécia (Syriza), Espanha(Podemos) e outros. Nessa segunda alternativa, ao saltar do status de partidos de protesto para o status de partidos na disputando ou já no exercício do poder, as esquerdas migraram para o leque centro-esquerda, fazendo a crítica das esquerdas anteriores que estavam no leque centro-esquerda que migrou para o leque centro-direita, como na Grécia (Pasok), na Espanha (PSOE), na Inglaterra (P. Trabalhista), na França (P. Socialista) e outros. Uma terceira alternativa de ‘preenchimento emergente’ vem se dando por atores ‘apolíticos’ do mundo técnico e religioso, que protelam ainda mais a construção de ampla consciência social para o debate democrático de projeto de nação, de sociedade e de pacto social. As reflexões e buscas de superação desses desafios devem considerar as dimensões do real poderio da globalização neoliberal ainda hegemônica abordada anteriormente.   No Brasil, com a democracia liberal pós-ditadura, deu-se o sinergismo entre os cartéis bancários e de grandes empreiteiras, com o presidencialismo de coalizão em implantação, redundando em crescimento com modernização (como na pesquisa, incorporação tecnológica e operação da extração de petróleo em aguas profundas), e até internacionalização(como obras de grande porte de empreiteiras brasileiras na América Latina e África).  Esses cartéis financiavam os mesmos partidos e autoridades no Legislativo e Executivo que compunham a coligação majoritária da situação até 2002 e também, a partir de 2003, até o seu esgotamento e impasses que o país vive a partir de 2015/2016. Em 2003 os aliados deslocaram-se em massa para a nova situação, o mesmo ocorrendo em 2016. O conjunto das operações da Justiça Federal, Ministério Público Federal e Polícia Federal, incluindo a Lava-Jato e o jornalismo investigativo com maior autonomia, acabaram por refletir avanço na consciência social e nacional, e consequente repulsa ao grau de deterioração da estrutura do ‘seu Estado’ frente á macro-corrupção nas suas vigas mestras do Legislativo e Executivo. Diligências que centraram nas ocorrências só após o ‘mensalão’, não minimizam o conjunto das revelações sobre a desestruturação do Estado democrático pela sanha dos cartéis do capital especulativo, das grandes empreiteiras e surpreendente parte do Legislativo, Executivo e partidos políticos.

Desafio 9 — Paira no ar ainda, a indagação sobre os motivos pelos quais o amplo impacto da vitória eleitoral de 2002 com apoio e esperança entusiasta da maioria da sociedade, incluindo o empresariado produtivo, e depois, por volta de 2008/2009 com 80% da opinião pública favorável ao governo, não houve iniciativa política de qualquer dos partidos da situação, dos movimentos sociais e do Legislativo e Executivo, de desencadear amplo debate voltado para a construção de projeto de nação e sociedade? Inclusive retomando a aplicação das políticas públicas constitucionais e retomando reformas estruturais como a política, a eleitoral, a tributária, a previdenciária, a trabalhista, a econômica, a industrialização e outras? Naquela década cresciam as análises e alertas de crescente número de respeitadas lideranças políticas, populares e intelectuais engajadas na coligação do novo governo, acerca do crescente distanciamento e até ruptura com os rumos iniciais, por ex., o prolongamento da inclusão social dependente quase só do poder de consumo, blindagem de auditoria independente da dívida pública, renúncia fiscal vultosa, errática e fisiológica etc. Outra importante indagação: como e porque o nosso presidencialismo de coalizão, desestruturante do Estado democrático, levou a maior parte dos integrantes da coligação majoritária, incluindo dirigentes, parlamentares e militantes de esquerda e centro–esquerda, a fazerem vistas grossas aos graves desvios públicos e promiscuidade entre Executivo e Legislativo no ‘mensalão’, na hegemonia do mercado subsidiado nos serviços públicos de educação e saúde, no ‘petrolão’ etc.? Inclusive comprovando a hegemonia do bloco centro-direita (‘centrão’) sobre o bloco centro-esquerda, este, revelando sua desarticulação e incapacidade de formulação e mobilização por  projetos próprios. As mesmas vistas grossas parecem ter se estendido ás revelações das operações contra a corrupção estrutural Estado-cartéis das grandes empreiteiras, em relação aos atores políticos reconhecidos como do campo do centro-esquerda e esquerda. Por final, pode ainda pairar a dúvida sobre possíveis conexões entre as referidas vistas grossas e insinuações de que as culpas desses crimes contra a nação e sociedade é exclusiva da direita e centro-direita (centrão). Mas aí emerge a reflexão sobre possibilidade de expressiva migração do bloco esquerda/centro-esquerda para a direita/centro-direita, sob a pena de serem tratados pelos predadores tradicionais do Estado, como ‘novos predadores’ a serem expulsos do mesmo butim público. O último ângulo que vemos desafiar as esquerdas e centro-esquerda em nosso país é a sua constatada paralisia no debate, formulação unitária ou suficientemente ampla, de propostas e projetos capazes de serem debatidos e empolgados por amplos segmentos da sociedade, incluindo o empresariado produtivo, referentes ás reformas fiscal, previdenciária, trabalhista, política, tributária, eleitoral e outras, com mobilizações e etapas pactuadas  para implementação. Nosso espectro centro-esquerda sempre gerou amplo contingente de pesquisadores, estudiosos, analistas e formuladores de primeira linha (vide as universidades federais, estaduais, o IPEA a ANFIP, DIEESE e outros institutos), que em seus textos e debates analisam e desmontam consistentemente as propostas e projetos da direita e centro-direita acima exemplificados.  Mas são esses projetos que em regra vem sendo ventilados pela mídia desde os anos 90 até hoje, e mais assumidos (explícita ou implicitamente) pelo Estado. As propostas e projetos gerados na centro-esquerda, quando assumidas e colocadas para debate, tem cingido ao(s) formulador(es) e/ou sua entidade de origem ou pouquíssimas entidades: não vem sendo tomadas como bandeiras prioritárias unitárias para aprimoramento, adesão, mobilização e disputa no poder de Estado. A formulação mais abrangente e consistente de esquerda (sem adesão de todas as esquerdas nem do centro) mas com muito potencial de ampliar para tanto, é de Setembro de 2015, ‘Por um Brasil Justo e Democrático’ e assumido por sete entidades: Brasil Debate, Centro Internacional Celso Furtado, Forum 21, Fundação Perseu Abramo, Plataforma Políticas Sociais, Le Monde Diplomatique Brasil, e Rede Desenvolvimentista. Talvez tenha chegado tarde para o debate, aprimoramento, ampliação, mobilização e disputa política: as mobilizações pelo impeachment e sua efetivação (avanço da direita), a nosso ver colocaram as esquerdas e o centro-esquerda em maior defensiva, o que piorou a baixa ofensiva em que já se encontravam.  É a nosso ver, ainda o melhor apoio para retomada. Em 2014 a acirrada disputa eleitoral não obscurece o recrudescimento do mal estar social explicitado em 2013, o que se intensificou em 2015 e 2016, nos dois ‘lados’ em relação ao impeachment e ao novo governo. Nas eleições municipais de 2016 os 40% de abstenções, brancos e nulos falam por si; os maiores cabos eleitorais são ignorados pelo eleitorado (Lula, Temer, Marina e Paes), e o petismo cai de 644 prefeituras em 2012 para 256 em 2016, incluindo o ABCD paulista.

Desafio 10 — Outro ângulo igualmente real do petismo é a continuidade do seu forte apelo á militância de base, expressa no crescimento de filiados de 532.000 em 2005 para 1.550.000 em 2016 (a maior filiação é a do PMDB, hoje com 2.356.000, ficando o PT em 2º lugar). Seguramente, a expressiva militância do PT tem raízes na sua formação, nos anos 70 e 80, no bojo das lutas contra a ditadura e exclusão social, em defesa dos pobres, dos trabalhadores, da justiça social e de exigente ética no exercício das funções públicas. Essa formação contou com extenso contingente nas comunidades cristãs de base, o nascente e forte sindicalismo nascido no ABC paulista (alternativo aos sindicalismos históricos de influencia esquerdista ou populista ou brizolista destroçados pela ditadura) e crescente adesão da intelectualidade de esquerda e parte do centro-esquerda. No bojo da explicitação pela direção do petismo, desde seu início, de que seu projeto não é nem socialista nem brizolista, por outro lado, desenvolveram-se inequívocos compromissos públicos e consequente militância de base desde os anos 80, pela justiça social, direitos dos trabalhadores, reformas estruturais, desenvolvimento econômico e intolerância ao uso do cargo e orçamento públicos para interesses particulares mercantís, de corporações e de partidarização, o que granjeou respeito e adesão de crescente militância, de simpatizantes e aliados, incluindo movimentos sociais progressistas e talvez maior parte do restante das esquerdas pós-ditadura. Nas eleições municipais dos anos 90 registraram-se concessões para o seu financiamento e contratos públicos no exercício da gestão municipal em várias prefeituras, em nome da conquista eleitoral e governabilidade, corporativismo e partidarização. Na campanha presidencial de 2002, a crítica aos governos anteriores não poupou o péssimo cumprimento das políticas públicas constitucionais, a pauperização das maiorias sociais, a desindustrialização, a corrupção na privatização de estatais e na formação de maiorias parlamentares. A partir de 2003 a grande inclusão social, ainda que ancorada quase exclusivamente na transferência de renda/elevação do poder de consumo (‘bolha’), somada á política externa voltada também para países em desenvolvimento na América Latina e depois na África e Ásia (Brics), e á exploração do ‘Pré-sal’, parecem ter ofuscado até hoje, a maior parte das atenções, cobranças e pressões pelo cumprimento dos demais itens que qualificavam a campanha de 2002, de base claramente social-democrata.  A análise de toda nossa conjuntura pós-constitucional, revela que a desconstituição da social-democracia democracia em nosso desenvolvimento, vem sendo projeto hegemônico da direita neoliberal desde os anos 90. Possivelmente a esquerda e centro-esquerda, dentro e fora do petismo, não vem conseguindo formular análises e projetos suficientes para a correção de rumos: foram a reboque, e pior: a partir de 2015 vem sendo associadas propositada e espertamente pela direita na mídia, ás três derrotas – na governabilidade, no impeachment e nas eleições municipais. Parece tratar-se de provocação em torno de provável crise de hegemonia no petismo, objeto de delicada e complexa análise com reflexo nas esquerdas e cento-esquerda, e que envolve a continuidade da atual hegemonia ou alternância (para qual outra hegemonia e projeto?) ou reunificação pluralista etc. Impõe-se auto-crítica e afastamentos na profundidade necessária, e eleição direta por todos os filiados, de nova direção e novo projeto, com ou sem refundação, em respeito á grande militância petista, á população e á esperança por um salto civilizatório com projeto de nação e pacto social. De qualquer forma o petismo, as esquerdas e o centro-esquerda encontram-se diante de derrota histórica perante o desafio de construção de um projeto de nação. As esquerdas e o centro-esquerda estão desafiados a provar que tem condições de sair da condição exclusiva de vítimas da direita, e as esquerdas, com o desafio de participar efetivamente no reinicio da construção das forças de centro-esquerda, e por isso, de se reinventar, se unir, superar divisões e retomar a construção de projeto de nação junto á sociedade civil. A bandeira do prévio retorno á situação pré-impeachment em nome da luta democrática, aparentemente acaba por desmobilizar outras bandeiras concomitantes comprovadamente sensíveis a todos os segmentos populacionais, como a continuidade do combate á comprovada macrocorrupção que desestrutura o Estado.    Sintetizando, citamos para reflexão a afirmação de Frei Beto “A esquerda nunca esteve no governo e a direita nunca saiu do poder”, complementada com a de Clovis Rossi referente á crise do impeachment: “A direita não voltou porque nunca saiu”, sintomasdelsida.org por sua vez complementada pela conclusão de recente análise de André Singer: “Em 2014 o capital viu a oportunidade de se livrar de prepostos e trazer de volta seus agentes diretos para comandar a Fazenda, Banco Central, o país, e não mais sabotar a Constituição/88, mas sua própria anulação”.

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