Cebes 40 anos

Memória do Futuro

Livro Cebes 40 Anos: Introdução

Cornelis Johannes van Stralen

 

Cebes 40 anos: sua história é menos do que o passado.

Nesses 40 anos, inúmeras pessoas têm participado, com maior ou menor dedicação, da luta permanente do CEBES pela democracia e pela saúde, inseridas nessa luta seja por meio de núcleos estaduais ou locais, seja por meio de outras entidades que têm atuado em parceria com o CEBES ou que em algum momento compartilharam suas lutas. O que podemos falar desse período não cabe em nenhum livro, pois, em face da imensidão de ações, interações e eventos que envolvem ex e atuais cebianos, qualquer relato sobre sua história é necessariamente incompleto.

 Cebes 40 anos: sua história é mais do que o passado.

É uma entidade que vem do passado, mas continua presente. Seu significado está em contínua transformação e é moldado por valores e perspectivas do momento; é um enredo que se organiza e se reorganiza ao passar do tempo e que aponta para o futuro; uma narrativa que traz em seu bojo uma justificativa social. No passar desses 40 anos, o CEBES tem se pautado por várias justificativas, dando lugar a um conjunto articulado de narrativas.

CEBES 40 anos é uma história tecida não meramente pelas vozes daquelas pessoas que participaram da sua criação, mas antes de tudo daquelas que continuamente estão recriando o CEBES, sejam aquelas pessoas que há tempos vêm participando, sejam aquelas que recentemente iniciaram sua militância no CEBES.

CEBES 40 anos: memória do futuro: é um olhar para trás a fim de caminhar mais decididamente para frente. O título sugestivo tomado de empréstimo do escritor russo Sigismund Krzhihanosvsky, que escreveu nos anos 20 do século passado a obra “Memórias do Futuro”, então considerada subversiva demais para ser apresentada a um editor, foi emprestado talvez por acaso ou talvez por expressar que as propostas do CEBES pretendem ser igualmente “subversivas”, pois incidindo sobre uma ordem política e social obstinadamente marcada por grandes desigualdades.

O CEBES, fundado em 1976, visava antes de tudo divulgar um pensamento crítico sobre a saúde em uma perspectiva marxista por meio da revista Saúde em Debate. As condições históricas da criação do CEBES e da revista e a sua importância histórica já foram muito bem analisadas em um pequeno artigo publicado por Amarante, Frizon e Costa (2015). Compreendendo o setor saúde como componente do processo histórico-social, os fundadores do CEBES, jovens sanitaristas, não apenas visavam divulgar conhecimentos, mas antes de tudo produzir conhecimentos para uma transformação do setor da saúde, como parte de uma transformação política e social.

 A fundação do CEBES e o lançamento da revista Saúde em Debate foram atos de coragem. O ano de 1976 ainda mal insinuava o longo processo de transição pelo qual o País iria passar. Alguns meses adiante, em abril de 1977, o general-presidente iria fechar o Congresso e baixar o Pacote de Abril, um conjunto de medidas para assegurar a supremacia da Arena, o partido de situação, ou seja, da ditadura. No final desse mesmo mês, estudantes e operários ficariam presos por distribuírem panfletos convocando para uma manifestação de protesto no dia 1º de maio. Entretanto, a conjuntura não era mais a mesma: os estudantes não mais se calaram e foram para as ruas, exigindo a libertação dos colegas e dos operários. Em 1978, os operários também entraram em cena, cruzaram os braços contra o arrocho salarial em Contagem e no ABC Paulista, sepultando o silêncio e o medo.

Na conjuntura de transição política, o CEBES e a revista Saúde em Debate encontraram um terreno fértil. Rapidamente estendiam sua esfera de influência por meio de núcleos estaduais e municipais. No início dos anos 1980, o CEBES já contava com aproximadamente 1.750 sócios distribuídos em 32 núcleos estaduais ou municipais (Sophia, 2015:177-178). Grande parte dos seus associados era formada por jovens médicos assalariados, sanitaristas egressos de cursos de especialização em saúde pública, residências de medicina social/preventiva ou de programas de pós-graduação strictu senso nessas áreas, ou outros profissionais de saúde que atuavam em novos programas de saúde, tais como o Programa de Interiorização de Ações de Saúde e Saneamento – PIASS, iniciado em 1978. Todos esses estavam descontentes ou em franca oposição ao regime militar e muitas vezes também insatisfeitos com sua situação profissional. A estrutura horizontal de núcleos deu ao CEBES grande capilaridade e condições de rapidamente responder a questões locais e regionais, assegurando readequações quando necessárias.

A criação do CEBES e da sua revista foi o marco inicial do movimento sanitária. As bandeiras do movimento foram se delineando por meio da revista Saúde em Debate e dos debates e encontros organizados pelos núcleos. Apontavam-se as falhas e as iniquidades dos então serviços de saúde e discutiam-se ardorosamente novas formas de organização da atenção à saúde.

Se a criação do CEBES foi o marco inicial do movimento sanitário, o documento fundante da Reforma Sanitária foi o texto “Democratização e Saúde”, apresentado pelo CEBES na seção de temas livres do I Simpósio sobre a Política Nacional de Saúde, organizado pela Comissão de Saúde da Câmara dos Deputados no período de 9 a 11 de outubro de 1979 (Câmara dos Deputados, 1980: 225-232).

 

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Esse documento foi oficialmente incorporado no Relatório do Simpósio pelo “seu caráter englobador e pela lucidez do diagnóstico da situação de saúde e da crise das instituições de saúde no Brasil”. Ganhou apenas um acréscimo pequeno, mas significativo, proposto por um representante do Sindicato do Médicos do Espirito Santo: “Recusar na sua totalidade o atual projeto da CLT, unindo-se à luta de todos os trabalhadores brasileiros”. O documento foi publicado na revista Saúde em Debate sob o título “A Questão Democrática na Área da Saúde” (1980, p. 11-13) e ficou conhecido por esse nome.

Em oposição à mercantilização da medicina, promovida de forma consciente e acelerada por uma política governamental privatizante, concentradora e antipopular, “propõe-se uma saúde autenticamente democrática”, entendida como: “o reconhecimento do direito universal e inalienável, comum a todos os homens”; a promoção ativa das condições que a viabilizam; a determinação social destas condições; a responsabilidade parcial das ações médicas, individuais e coletivas, na promoção ativa da saúde; o reconhecimento da responsabilidade da coletividade e do Estado pela efetiva implementação e resguarda destas condições (p. 228). São apresentadas várias recomendações para um novo sistema de saúde, entre as quais a criação de um sistema único de saúde, administrado pelo Estado e organizado de forma descentralizada e contando com uma autêntica participação democrática em todos seus níveis. O documento definiu as grandes linhas do programa, não apenas do CEBES, mas do movimento sanitário.

O movimento sanitário fortalecia-se pela articulação do CEBES com entidades e movimentos nacionais, tais como o Movimento de Renovação Médica – REME, a Sociedade Brasileira pelo Progresso da Ciência –SBPC, a Conferência Nacional dos Bispos – CNBB, a Ordem dos Advogados do Brasil, o novo movimento sindical que se organizou na Central Única dos Trabalhadores – CUT, Central Geral de Trabalhadores, e na Conferência Nacional dos Trabalhadores – CONCLAT, todos em grau maior ou menor em oposição ao regime militar. Entretanto, a contribuição maior para o fortalecimento do movimento veio da criação da Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva – ABRASCO em 1979 (desde 2011, Associação Brasileira de Saúde Coletiva). A relação entre o CEBES e a ABRASCO era quase simbiótica, na medida em que muitos membros da ABRASCO, que continua sendo uma importante parceira do CEBES, eram ao mesmo tempo membros das duas entidades.

Favorecido principalmente pela articulação CEBES e ABRASCO, emergiu, na década de 1980, o que na abordagem de políticas públicas do Modelo de Coalizações de Defesa (Advocacy Coalition Framework) é chamada uma coalizão de defesa da Reforma Sanitária (Sabatier & Weible, 2014). Essa coalizão emergiu dentro do subsistema de políticas de saúde que congrega atores, individuais ou coletivos, organizações públicas ou privadas que direta ou indiretamente buscam influenciar as políticas de saúde. A coalizão de defesa da Reforma Sanitária era formada por sanitaristas que trabalhavam em vários níveis do governo, acadêmicos, jovens profissionais de saúde, Secretários de Saúde de alguns municípios Associações de Profissionais de Saúde, Sindicatos Médicos, Fiocruz, e contava com apoio de setores da igreja e de uns poucos segmentos populares, tais como o movimento popular da saúde – MOPS e Federações de associações de bairro. De acordo com os teóricos do Modelo de Coalizão de Defesa, uma coalização de defesa tem como principal aglutinador um sistema de concepções, crenças e valores organizado de forma hierárquica em três níveis dispostos segundo o grau decrescente de resistências à mudança. Esse sistema de concepções, crenças e valores da coalização de defesa da Reforma Sanitária encontra-se basicamente expresso no referido documento “A Questão Democrática na Área da Saúde”. As concepções do núcleo duro (deep core beliefs) eram que a saúde e a atenção à saúde são socialmente determinados e que saúde é um direito social e um dever do Estado; a concepção do núcleo de políticas (policy core beliefs) era que a efetivação concreta do direito social à saúde requer um Sistema Público de Saúde, a ser conquistado por meio de mobilização democrática; e concepções secundárias (secondary beliefs) diziam respeito à estruturação de um sistema de saúde único, descentralizado de acordo com a estrutura política do País, prestando atenção integral à saúde.

As condições para criar um Sistema Único de Saúde eram adversas: uma sociedade altamente hierarquizada, predominância de uma ideologia liberal ou neoliberal, planos privados em expansão principalmente por intermédio de convênios com grandes e médias empresas, uma rede de hospitais e serviços de diagnóstico largamente privada na maior parte do País, profissionais de saúde atuando ao mesmo tempo em serviços públicos e privados. Além disso, no setor de saúde, estava presente uma outra coalizão em defesa da medicina privada, contrária ao que era denunciada como a estatização da saúde. Entretanto, a coalizão em defesa da Reforma Sanitária estava com certa vantagem, pois contava com lideranças hábeis com amplo conhecimento científico e técnico. Além disso, a mudança da política de saúde estava sendo favorecida pela transição política, pois esta veio acompanhada por grandes expectativas de mudanças sociais e políticas.

A coalizão de defesa da Reforma Sanitária teve um importante papel na organização e realização da VIII Conferência Nacional da Saúde, realizada em 1986 e considerada o Pré-Constituinte da Saúde. Seus três grandes temas – “Saúde como Direito”, “Reformulação do Sistema Nacional de Saúde” e  “Financiamento do Setor” – foram inspirados no documento “A Questão Democrática na Área da Saúde” e nos debates organizados pelos núcleos do CEBES em várias regiões do País. Em seguida, o debate sobre o direito à saúde e a organização de um novo Sistema de Saúde foi retomado no I Congresso Brasileiro de Saúde Coletiva da ABRASCO, realizado em setembro de 1986. Dessa forma, o movimento sanitário chegou, em 1987, na Constituinte com propostas bem definidas a respeito da Saúde. Conseguiu incorporar muitas de suas propostas na Constituição Federal de 1988 graças à sua capacidade de organização e à sua hábil assessoria a deputados constituintes vinculados à área da saúde, mas em geral desprovidos de conhecimentos técnicos.

Entretanto, nem tudo era ouro o que brilhava, como iria se evidenciar na continuidade da luta pela Reforma Sanitária. O texto sobre saúde contém um artigo destoante que foi inserido pela pressão do setor privado: Art. 199. A Assistência à Saúde é livre à iniciativa privada. Além disso, em contraste com a Educação, a Saúde não conseguiu definir fontes de financiamento ou vinculação orçamentária, o que mais tarde iria se evidenciar com um verdadeiro calcanhar de Aquiles. De fato, o que naquele momento foi visto com um mal menor, era na realidade o topo de um iceberg: o projeto da coalizão da defesa da saúde privada que aglutinava a Federação Nacional dos Estabelecimentos de Serviços de Saúde – FENAESS, a Federação Brasileira de Hospitais – FBH, a Associação Brasileira de Planos de Saúde/Associação Brasileira de Medicina de Grupo – ABRAMGE (que comemorou este ano seus 50 anos!), a Associação Médica Brasileiro – AMB, UNIMED, União dos Empresários do Brasil – Federação das Indústrias de São Paulo – FIESP, setores do INAMPS, grande parte dos deputados do “Centrão” liderado nesse assunto pelo deputado Roberto Jeferson.

A despeito do artigo 199, da falta de fontes estáveis de financiamento do SUS e do fato de que o texto constitucional estava muito além do sistema de saúde real, o texto constitucional foi uma vitória para o Movimento Sanitário e legitimou a luta pela implementação de um novo sistema de Saúde, o SUS. Assim, o Movimento Sanitário pode ser considerado vitorioso. De fato, o final da década de 1970 e a década de 1980 foram a “Golden Age” do CEBES e do movimento sanitário.

Iniciou-se agora o difícil processo de implementação do SUS. Nesse processo, o Conselho Nacional de Secretários de Saúde – CONASS, fundado em 1982, e Conselho Nacional de Secretários Municipais de Saúde – CONASEMS, fundado em 1988, tornaram-se atores centrais. Ambos haviam surgido de grupos de secretários que se articularam informalmente, o primeiro de secretários estaduais procurando captar recursos do INAMPS e o segundo de secretários municipais de cidades de médio porte governados pela então partido de oposição – MDB e haviam apoiado a luta pela Reforma Sanitária. Para viabilizar sistemas municipais de saúde, assumiram agora posições mais pragmáticas, inclusive em relação ao setor privado. Ao mesmo tempo, o SUS recebia pouco apoio declarado do Governo Federal. Nessas circunstâncias, a Coalizão em Defesa da Reforma Sanitária foi se dissolvendo. Entretanto, o CEBES e a ABRASCO continuavam a dar contribuições importantes às Conferências Nacionais de Saúde, o que já vieram a fazer desde a 8a CNS e continuam a fazer isso até hoje.

Enquanto isso, a Coalizão da Defesa do Setor Privado acabou de aceitar o SUS enquanto sistema de saúde para os “pobres”. Ao mesmo tempo, começou a utilizar o SUS como um tipo de resseguro, encaminhando seus clientes para o SUS em caso de procedimentos complexos e caros. Ressalta-se que o setor privado tem tido como aliado a grande mídia, pois esta tem contribuído por meio de reportagens seletivas para desqualificar o SUS como sistema público universal e equitativo.

A Coalização em defesa da Reforma Sanitária começou se rearticular em 2002 em vista das eleições presidenciais. Naquele momento, a ABRASCO e o CEBES retomaram o debate sobre a Reforma Sanitária, convocando intelectuais e militantes da Reforma Sanitária em 13 de setembro, na véspera das eleições, para um encontro cujo resultado foi o lançamento da carta “Em Defesa da Saúde dos Brasileiros” subscrita pela ABRASCO e CEBES. Uma vez eleito Lula, organizaram outro encontro em 17 de dezembro visando à construção do governo do presidente, lançando um documento que registra uma série de reivindicações, a respeito da Seguridade SUS, política de recursos humanos, política de ciência e tecnologia etc. (CEBES/ABRASCO, 2003).

 

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A retomada do debate sobre a Reforma Sanitária desembocou, em 2005, em uma retomada de uma Coalização em Defesa da Reforma Sanitária por meio da criação do Fórum da Reforma Sanitária Brasileira, formada pela ABRASCO, CEBES, Rede Unida, Instituto de Direito Sanitário Aplicado – IDISA, Associação Brasileira de Economia da Saúde – ABRES e a Associação Nacional do Ministério Público em Defesa da Saúde – AMPASA e posteriormente a Associação Paulista de Saúde Pública – APSP. Esse Fórum já foi muito ativo em 2005 e atuava articulado com outras instâncias, entre outras a Frente Parlamentar pela Saúde. Participou do 8o Simpósio sobre Política Nacional de Saúde da Câmara dos Deputados, realizado em julho de 2005, e em novembro do mesmo ano lançou o Manifesto Reafirmando Compromissos pela Saúde dos Brasileiros em um ato público na Câmara dos Deputados pela aprovação da PEC 29 e pela ampliação de recursos para o SUS e em apoio à Carta de Brasília lançada pela 8o Simpósio. Em julho de 2006, lança o documento O SUS para valer: universal, humanizado e de qualidade em vistas das eleições presidenciais, apresentando um diagnóstico da Reforma Sanitária e do SUS e Estratégias Programáticas (Fórum, 2005).

Enquanto o CEBES atuava com outras entidades por intermédio do Fórum da Reforma Sanitária Brasileira, a entidade entra em uma crise de identidade. A causa imediata era uma grave crise financeira provocada por circunstâncias que escaparam à sua administração. Essa crise ameaçava a continuidade da revista Saúde em Debate e da revista Divulgação em Saúde para Debate (linha editorial iniciada em1989). Para a direção nacional, era “inquestionável que a atuação do CEBES nos seus trinta anos já lhe assegurou um lugar na história da Reforma Sanitária Brasileira”. Também não havia dúvidas a respeito da importância da manutenção das suas revistas. Entretanto, a crise financeira impôs duas indagações: “Qual é o papel do CEBES na atual conjuntura da política de saúde?” e “Como manter a entidade funcionando diante de sua fragilidade financeira?” (Editorial Saúde em Debate, v.29 n.79, 2005).

Diante desses questionamentos, a diretoria apresentava três opções: manutenção, dissolução, ou fusão total ou parcial com a ABRASCO.

Esta última alternativa soa estranha. Sugere que a crise de identidade possa estar relacionada também com o fato de que ABRASCO tomara a liderança no Fórum em substituição à grande liderança do CEBES na década de 1970 e início da década de 1980, principalmente pelo fato de que seus recursos eram, nessa época, já muito mais vultosos do que os do CEBES: o número de associados institucionais e individuais e de pesquisadores, as revistas, congressos científicos, articulação com entidades científicas e com CNPq e CAPES, infraestrutura administrativa e recursos financeiros.

A Assembleia Geral do CEBES no 8o Congresso Brasileiro em Saúde Coletiva, realizado em 2006 no Rio de Janeiro, optou pela refundação da entidade. A diretoria eleita nessa oportunidade desde então colocou qual seria a perspectiva da refundação: revitalizar o debate sobre saúde não apenas entre os sanitaristas, mas com a sociedade em geral e propor “uma reforma da reforma”, tendo como meta o projeto de transformação social e política, e não apenas a melhoria do SUS. Divulgou sua plataforma política em abril de 2007, que se encontra publicada na revista Saúde e Debate v.29 n.71.

O processo de refundação permitiu ao CEBES reconstruir sua identidade como um “espaço plural e não partidário, comprometido com a construção da Democracia e Saúde e retomar com vigor a luta pela hegemonia, ampliando a consciência sanitária e participando na constituição de sujeitos políticos emancipados. Isso requer que o CEBES seja um interlocutor dos meios de comunicação e se articule com os movimentos organizados da sociedade civil” (CEBES, 2007).

A refundação contribuiu para uma revitalização do CEBES. Após reestabelecer as condições financeiros, a entidade regularizou a publicação das suas revistas, investiu na sua linha de publicação de livros, organizou seminários e simpósios… Politizou sua ação, publicando teses, notas e manifestos, e, enquanto a atuação do Fórum da Reforma tem recuado, o tema do primeiro simpósio (2009) foi Seguridade Social; ampliou suas articulações com movimentos da sociedade civil, incluindo a Frente Brasil Popular e o Grito dos Excluídos.

Consciente da importância da rede dos núcleos, o CEBES tem investido na formação teórica e política dos seus militantes e das pessoas envolvidas na Reforma Sanitária. Essa formação deu-se principalmente por meio de dois projetos desenvolvidos nos últimos anos: Projeto de Formação em Cidadania para Saúde: Temas Fundamentais da Reforma Sanitária e um projeto de cooperação CEBES x Médico Internacional. O primeiro produziu material didática, vídeos e uma coleção Temas Fundamentais de Reforma Sanitária consistindo de 10 fascículos no formato de e-book e impressos, que permita a reprodução dessa experiência de formação, seja por meio do CEBES, seja por meio de outras entidades. O segundo produziu uma guia sobre Coberta Universal e o SUS.

Ao longo dos seus 40 anos, o CEBES tem passado por vários momentos e conjunturas políticas, a ditadura militar, a transição política, o governo conservador e ambíguo do Sarney, os governos neoliberais de Collor e FHC e os governos de Lula e Dilma com políticas de inclusão social. Sempre manteve sua bandeira de Reforma Sanitária e a luta pela democracia e saúde. A definição da saúde como direito social parecia abrir o caminho para a institucionalização da Reforma Sanitária, no qual o direito à saúde se encontra legalmente entronizado. Mesmo que o crônico subfinanciamento do SUS, ao lado de incentivos para planos de saúde, sugerisse que um sistema de saúde universal e equitativo em nenhum momento era um projeto do governo, o CEBES e o movimento sanitário sempre nutriam esperanças, e, de fato, com a implementação do SUS, houve grandes avanços. O SUS ampliou a oferta de serviços, universalizou o acesso à saúde principalmente por meio da Estratégia da Saúde de Família e do Programa Mais Médicos, criou programas com grande impacto, tais como o Programa de Imunizações e o Programa de Controle de HIV/AIDS, melhorou os níveis de saúde investindo em promoção da saúde e prevenção.

Tendo como referência a clássica tipologia de Welfare State de Esping-Andersen (1990), parecia que, quanto à saúde, o Brasil estava caminhando de um mix de um regime de welfare state liberal e corporativista para um welfare state baseado em direitos sociais e cidadania. Entretanto, o golpe parlamentar que destituiu a presidente Dilma e colocou no poder um governo ilegítimo, formado por uma coligação de oligarquias políticas tradicionais, sempre resistentes a políticas sociais, e do capital financeiro “moderno” que não se fundamenta em um pacto entre capital e trabalho que reconheça direitos sociais. Projetos considerados por este governo como fundamentais, o EC 241/255 que congela gastos com Saúde e Educação e a PEC 287, encorajam esquemas de proteção social por meio de mercado, deixando a população de baixa renda com um esquema de proteção social mínimo. Fazem com que o País caminhe a passos largos para um welfare state liberal ou neoliberal. Parafraseando Svetlana Alesievitch, que no livro O Fim do Homem Soviético, ao citar Alexander Grin que antes revolução de 1917 escreveu “O futuro não está mais no seu lugar”, acrescenta: “Cem anos depois, novamente o futuro não está no seu lugar. Iniciou-se um tempo de segunda-mão”, poderíamos dizer: Após 40 anos, o futuro novamente não está mais no seu lugar. Iniciou-se um tempo de segunda mão.

 

Tomaz Silva/ABr

 

O presente livro CEBES 40 anos: memória do futuro é uma das inúmeras histórias que poderão ser contadas sobre o CEBES. A narrativa apresentada aqui privilegia o momento atual da negação do direito à saúde e fez a opção de tomar como referência as diretorias pelas quais a entidade passou ao longo desse tempo. Outras narrativas poderiam privilegiar os núcleos que colocam o CEBES presente em nível local. Entretanto, essa opção não seria fácil, pois poucos núcleos têm arquivado dados das suas caminhadas, e muitos participantes dos núcleos têm lutado quase anonimamente.

A primeira parte, Anos de Viagem: CEBES 40 anos, traz a fala de todos os presidentes do CEBES e dos que já foram, Arouca, Eleutério, Davi Capistrano e Eric, um memorial. Muito apropriadamente, essa parte inicia-se com o documento fundante “A Questão Democrático na Área da Saúde”. Essa parte permite ver como o CEBES é ressignificado em cada momento, principalmente no momento da refundação, aqui lembrado por meio de dois documentos. Entretanto, a luta pela Democracia e Saúde atravessa os 40 anos como uma linha que tece uma única peça.

A segunda parte do livro trata do principal instrumento de ação do CEBES, como Centro de Estudos: A revista Saúde em Debate e a produção editorial do Cebes. Traz o artigo de Paulo Amarante, Lucia Frizon Risoto e Ana Maria Costa sobre a revista que conclui que ao longo dos suas quatro décadas a Saúde em Debate se afirmou como um veículo de comunicação científica e política para o campo da saúde coletiva. Fica o grande desafio de como manter essa linha em um contexto em que há tantos estudantes procurando publicar seus artigos. Entretanto, a revista está em um bom caminho, procurando focalizar as políticas de saúde e experiências relevantes do processo de implementação do SUS.

A terceira e a quarta parte falam do CEBES de hoje e o colocam no meio da grande tensão entre um projeto civilizador de direitos sociais e políticas universais correspondentes e um projeto de mercantilização da saúde e da previdência social, relegando para os “pobres” um sistema de saúde e de proteção social mínimo.

 

A terceira parte republica vários documentos, teses, referentes de tomadas de posição do CEBES durante os governos do Lula e da Dilma, evidenciando que o CEBES não perdeu sua postura crítica e manteve sua autonomia perante o governo, apontando sempre que a Reforma Sanitária não se reduz a uma reorganização de serviços de saúde, mas implica uma transformação social e cultural. Essa parte termina com a fala de integrantes de núcleos que traduzem as propostas do CEBES para as lutas cotidianos em nível local e regional.

A quarta parte aborda, por intermédio da fala de Cebianos e Cebianas históricas, a atualidade da questão democrática da saúde e inclui uma fala de Elida Graziane, Procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo que obstinadamente argumenta que o financiamento dos direitos fundamentais é dever constitucional do Estado.

Essa seção finaliza com declarações de pessoas que, nas lutas sociais, têm mantido contatos com o CEBES. Essas declarações nos remetem para a questão do papel do CEBES neste momento atual. Não há dúvida de que agora são colocadas novas demandas para o CEBES e outras entidades do Movimento Sanitário. É comum agora que os chamados movimentos sociais têm falado muito para si mesmos e perderam os contatos mais orgânicos com as suas bases. Frequentemente, enfatiza-se a necessidade de retomar os trabalhos de base. Para isso, não basta apenas a boa vontade, é necessário ter formação e dispor de instrumentos pedagógicos. Aqui podemos visualizar a importância dos Núcleos, e também para o CEBES tem havido momentos em que os contatos com suas bases não foram suficientemente valorizados.

Certamente, o livro CEBES 40 anos: a memória do futuro nos ajudará a refletir sobre o papel dessa entidade hoje e a valorizar mais a estrutura horizontal que permita travar as lutas do CEBES de forma adequada às condições locais e regionais.

 

 

REFERÊNCIAS

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Câmara dos Deputados. I Simpósio sobre Política Nacional de Saúde, 9-11 de out. De 1979. V.1 Conferencias. Brasília, 1980.

CEBES. A Questão Democrática na Área da Saúde. Saúde e Debate, 1980: v. 9: 11-13.

CEBES/ABRASCO. Em defesa da Saúde dos Brasileiros. Carta à sociedade brasileira, aos partidos políticos, aos candidatos e candidatas à Presidência da República, aos governos estaduais e distrital, à Câmara dos Deputados e ao Senado Federal. Saúde em Debate, 2002; 26(62): 290-294

CEBES/ABRASCO. Documento complementar ao documento “Em defesa da Saúde dos Brasileiros. Saúde e Debate, 2003; 27 (63): 76-

Fórum da Reforma Sanitária Brasileira. Manifesto Reafirmando Compromissos pela Saúde do Trabalhadores. Brasília, 2005. Disponível em: http://www.abrasco.org.br/publicacoes/arquivos/20060713121020.pdf

Fórum da Reforma Sanitária Brasileira. SUS para valer: universal, humanizado e de qualidade. Saúde em Debate, 2005; 29(71): 385-396.

Sabatier P, Weible CM. Theories of the Policy Process. 3ed. Westview, 2014.

Sophia DC. Saúde & Utopia: o CEBES e a Reforma Sanitária Brasileira. São Paulo: Hucitec, Sobravime; 2015.