SUS: a dura luta contra a hegemonia neoliberal

Nelson Rodrigues dos Santos

 

Introdução

 

Neste texto sistematizamos dados e análises, reafirmando a construção, desde 1990, de política pública de saúde que vem subvertendo os princípios e diretrizes da Constituição Federal de 1988: uma política real, implícita e hegemônica. Em relação a esses princípios e diretrizes, identificamos e reforçamos porém, os avanços e resistências com eles coerentes e explícitos, contra-hegemônicos, mas portadores de inestimável acumulação em gestão, avaliação, formulação de estratégias de resistência, em conhecimentos e tecnologias apropriados e politização em defesa das diretrizes constitucionais, e por isso, inabdicáveis para a retomada do rumo dado em 1988. Em outro texto, ‘Processo Civilizatório versus Concentração Ilimitada da Riqueza e Mando na Sociedade e no Estado’, também no site do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes), abordamos as raízes motoras da hegemonia neoliberal.

 

I. O decisivo impulso inicial do SUS

 

Contribuindo ao entendimento e equacionamento da grande encruzilhada atual do SUS (Sistema Único de Saúde), profunda e complexa, assim como das alternativas desejáveis possíveis, não há como não remontar suas raízes nos anos de 1970 na ditadura quando, em consequência às intensas concentrações de renda e pauperização da população, deu-se inusitada e massiva migração populacional para as periferias urbanas de cidades médias e grandes, com grande elevação da tensão social.  As respostas do Estado brasileiro concentraram-se nas Prefeituras municipais com elevação da oferta de serviços sociais básicos, ainda que mínimos e precários devido aos baixíssimos orçamentos municipais, entre eles, os de saúde. Também na mesma década as duas escolas de Saúde Pública – Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (FSP/USP) e Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz (Ensp/FioCruz)  remodelavam seus cursos tradicionais de Saúde Pública, concentrando-os em um semestre e/ou regionalizando para outras unidades federadas, o que passou a disponibilizar levas de jovens sanitaristas com visão da atenção integral á saúde, com perfil de gestão regional, e sensíveis á políticas públicas de direitos sociais e à inabdicável democratização do Estado.

Ao final dos anos de 1970 dezenas de municípios no país expandiam redes periféricas de Unidades Básicas de Saúde e na prática acumulavam  experiência na atenção integral á saúde, universal e equitativa. Sem prever que já estavam antecipando na prática os princípios da Universalidade, Integralidade e Igualdade da Constituição de 1988, realizaram até o final dos anos de 1980 dez encontros regionais e nacionais de Secretarias Municipais de Saúde (SMS) e organizaram colegiados ou associações estaduais de SMS com ricas trocas de experiências. Durante os anos de 1980 esse movimento municipal de saúde (centrado nas SMS) cruzou positivamente com movimento mais amplo de formulação de políticas públicas para direitos de cidadania e mobilização da sociedade, também iniciado nos anos de 1970 por grande número de acadêmicos e estudiosos da FioCruz, do Inst. de Medicina Social da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), da USP, da Universidade Federal da Bahia (UFBA), Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Ministérios da Previdência e da Saúde e outros: o Movimento da Reforma Sanitária Brasileira (MRSB). Esse movimento realizou junto com a Comissão de Saúde da Câmara dos Deputados Federais, em 1979 e em 1982, o I e o II Simpósio Nacional de Política de Saúde, de grande repercussão, que muito contribuíram para a realização, após o final da ditadura, da XIII Conferência Nacional de Saúde, em 1986. Já no refluxo da ditadura, o movimento municipal de saúde e as Secretarias Estaduais de Saúde juntos conseguem convênios com o Ministério da Previdência e Assistência Social (com apoio estratégico do Ministério da Saúde), que propiciou marcante expansão do atendimento integral à saúde. Essa expansão, além da grande ampliação da cobertura por serviços de saúde, revelou nos municípios inusitada produtividade das equipes iniciais multi-profissionais de saúde e inovações no micro-processo de trabalho. Vários indicadores de saúde nos anos de 1980 refletiram a eficácia da municipalização no controle da hipertensão e suas sequelas, da poliomielite, do sarampo, de doenças no pré-natal e puerpério, de infecções respiratórias, da desidratação infantil e outras. Esse substrato efetivo conferiu substancia e foi fundamental nos debates e resultados da 8ª Conferência Nacional de Saúde (1986), da Comissão Nacional da Reforma Sanitária (1987) e da Assembleia Nacional Constituinte (1988), tendo como pano de fundo o referencial dos sistemas públicos de saúde em desenvolvimento na maioria dos países europeus e em Cuba.

Esse patamar municipal atingido na década de 1980 avançou na década dos anos 1990 com o SUS obrigado em Lei, completando nessa década a inclusão de metade da população antes excluída de qualquer sistema de saúde. De 1990 a 2005 os municípios com parcos recursos passaram a ser responsáveis por 93% dos novos estabelecimentos públicos de saúde e 69% dos servidores públicos de saúde no país. Sua porcentagem média dos impostos municipais destinada à saúde elevou-se acentuadamente, chegando a 14,4% em 2000 e 23,3% em 2015, revelando no contexto interfederativo, que vem sendo a esfera de governo na saúde que rompe com a cultura política anti-pública e anti-social de tratar o limite mínimo legal estipulado na Emenda Constitucional (EC) 29, como ‘teto’.

 

II.   Os 26 anos de avanços do SUS

 

Os inquestionáveis avanços do SUS a favor das necessidades e direitos da população constituem patamar inabdicável de realizações, conhecimentos e expertise acumulados na atenção integral à saúde. No âmbito da Atenção Básica à Saúde (AB) foi desenvolvido alto nível de integração das ações promotoras, protetoras e recuperadoras da saúde, adequadas para cada realidade social, epidemiológica, cultural e regional das necessidades e direitos da população, envolvendo novos conhecimentos, perfis profissionais, tecnologias e processos de trabalho em equipe, com resolutividade entre 80% e 90% das necessidades de saúde. Porém, como ‘exceções’: são dezenas de locais ou micro-regiões no território nacional, com circunstancias e características favoráveis, muitas vezes excepcionais dos gestores descentralizados, trabalhadores de saúde, equipes de saúde de família, apoio matricial, núcleos de apoio à saúde de família, infra-estrutura física e de custeio, suporte de referências especializadas, etc., não raro em integração com atividades acadêmicas em saúde, mas sem condições e perspectivas de estratégias para expandir e tornar-se ‘regra’ para toda a população nos territórios estadual e nacional: permanecem e reciclam-se como verdadeiros ‘nichos’ ou trincheiras. Com essas mesmas características de excelência e expertise desenvolvem-se e mantêm-se ‘nichos’ ou trincheiras nas redes dos Centros de Atenção Psico-Social (Caps), dos Centros Regionais de Saúde do Trabalhador (Cerest), dos serviços pré-hospitalares de urgência-emergência (Samu) e dos Hemocentros (também no limite de exceções sem condições e perspectivas de expandir e tornar-se regra). A competência da nossa Vigilância em Saúde é reconhecida internacionalmente, apesar da modesta infraestrutura na esfera regional, a assistência especializada e fornecimento de materiais muito avançaram na inclusão dos portadores de deficiências e doenças crônicas específicas, o nosso controle da Aids é ainda o de melhor avaliação entre os países em desenvolvimento, mas já com retorno da elevação da incidência, da letalidade (nas regiões sul e norte), e queda dos testes de HIV nos grupos mais vulneráveis; nossos serviços de transplantes de órgãos e tecidos estão entre os mais produtivos do mundo, ainda que carregando porcentagens altas e  inaceitáveis de falências renais, hepáticas e outras, comprovadamente evitáveis no âmbito dos serviços básicos universais de qualidade.

Nos 26 anos do SUS ficou notável a retroalimentação entre: de um lado, a resistência aos desvios e realização dos avanços possíveis, e, de outro agoradesign.it lado, a assunção do ideário do modelo de atenção á saúde com base nas necessidades e direitos de cidadania. Ideário esse a ser viabilizado com política pública universalista que abrange os condicionantes socioeconômicos da saúde e rede de atenção básica de fácil acesso nos locais residenciais e de trabalho, com resolutividade de 80% a 90% das necessidades de saúde e capacitada para assegurar e ordenar o acesso á assistência especializada aos restantes 10% a 20% (modelo SUS).  É o ideário que na prática está mais voltado para a relação custo/eficácia social, do que para a mera relação custo/efetividade. Essa combinação de práticas e valores humanos gerou uma postura de positiva militância: a ‘militância SUS’ assumida diariamente  por centenas de milhares de trabalhadores de saúde, gestores descentralizados, conselheiros de saúde e movimentos por direitos sociais e democratização de Estado. É de se destacar ainda, que a referida assunção do ideário e os avanços desenvolvidos propiciaram avanço no pacto interfederativo na área social: a intergestão por meio das comissões intergestores nos âmbitos nacional, estadual e regional, pleiteadas pelos estados e municípios nos primeiros anos do SUS, reconhecidas na prática desde 1993 e legalizadas somente em 2012.  Resta ainda a efetivação da diretriz constitucional da Hierarquização/ Regionalização, desafio estruturante, estratégico e decisivo ao desenvolvimento do SUS, pendente até hoje: não há como nela não incorporar a grande acumulação da experiência municipal por quatro décadas na inclusão social e esforços pelo modelo ‘SUS’.  A superação dessa pendência já conta com claro respaldo constitucional e legal: o comando único nas esferas federadas e as pactuações intergestores em plena implementação; resta o desafio da construção do comando único na menor célula sistêmica do SUS, a Região de Saúde, a ser definido e pactuado nas comissões intergestores e deliberado nos conselhos de saúde.  Daí, a pergunta: como e porque a ‘militância SUS’, operando com grande produtividade e monumental produção de ações e serviços de saúde, não vem conseguindo transformar a ‘exceção’ em ‘regra’? Porque, após 23 anos de implementação oficial do SUS, a sua ‘militância’  viu-se acertadamente compelida a conceber e lançar o bem sucedido programa Mais Médicos, mais um exemplo dos avanços do SUS ? É o que será abordado no próximo tópico.

 

III. Os 26 anos de distorções e desvios do rumo do SUS

 

O sub-financiamento federal e seus imbricamentos: alguns dos fatores que geraram distorções e desvios perpetrados ao longo desses 26 anos.

 

  • Desconsideração da ‘determinação’ constitucional do mínimo de 30% do Orçamento da Seguridade Social (OSS) (1990) e, na base de cálculo ‘consignada’ para o SUS, a subtração da contribuição empregado-empregador do Fundo da Previdência Social, a maior fatia do OSS (1993). O financiamento federal permaneceu desde então entre 1/3 e 1/2 do que foi inicialmente ‘determinado’ e ‘consignado’ na Constituição de 1988. O gasto federal com o SUS é mantido em 1,7% do PIB, enquanto os gastos com os juros da dívida pública, vem crescendo ano a ano, já chegando aos 8% do PIB,
  • Desvio de ponderáveis recursos do SUS para outras ‘prioridades’: a) a partir de 1997, dos recursos da CPMF recém-aprovada para o SUS, e b) a partir de 1994 com o Fundo Social de Emergência passando em 2000 à DRU(Desvinculação das Receitas da União), retirando 20% do OSS e renovável a cada 4 anos. Não por coincidência em 1997 é extinto o Conselho Nacional de Seguridade Social por decreto presidencial,
  • Aprovação em 2000: da EC-29 que vincula o financiamento do SUS aos impostos somente para os Estados e Municípios; da Lei da Responsabilidade Fiscal que piorou a limitação do quadro público de pessoal, com maior penalização aos municípios, e da Lei criadora da Agência Nacional de Saúde (ANS) para regulação do mercado dos planos e seguros privados de saúde,
  • Crescimento e sistematização nos anos de 1990 de três formas de subsídios públicos federais ao mercado de planos e seguros privados de saúde: a renúncia fiscal (o mais volumoso, estendido ao mercado de fármacos), o co-financiamento público de planos privados de saúde à totalidade dos servidores e empregados públicos dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, e o ressarcimento (obrigado em Lei pelas empresas de planos privados ao SUS), apenas simbólico, pelos serviços públicos de saúde prestados aos seus consumidores,
  • ‘Engavetamento’, em 2004, do PL-01/2003, após aprimoramentos e aprovação arduamente conquistados pela militância ‘SUS’ nas três comissões obrigatórias na Câmara dos Deputados. O PL elevava o financiamento federal para o mínimo de 10% da Receita Corrente Bruta(RCB) da União e dispunha sobre estrutura de gastos atrelada à construção do modelo ‘SUS’: planejamento/orçamentação ascendentes, regionalização, repasses equitativos, etc.,
  • ‘Engavetamento’ em 2007 no Senado, do PL-121/2007, similar ao PL-01/2003,
  • A partir de meados da primeira década dos anos 2000, amplo, fortemente subsidiado e facilitado financiamento público (Banco Nacional do Desenvolvimento e Banco Interamericano de Desenvolvimento – BNDES e BID) para edificações dos hospitais privados de grande porte conveniados com o SUS e credenciados pelas grandes empresas de planos e seguros privados de saúde, assim como dos hospitais próprios dessas empresas,
  • Veto governamental ao artigo do PL-141/2012 que dispunha sobre o mínimo de 10% da RCB para o SUS, mantendo os demais artigos dos PL-01/2003 que tratam dos gastos,
  • Veto governamental, apoiado pela bancada da situação na Câmara dos Deputados, ao debate aberto e votação do Projeto de Lei de Iniciativa Popular -PLIP-321/2013 requerido por dois milhões de assinaturas de eleitores (articulado pelo CNS, CNBB e mais de 100 entidades), terceiro ‘engavetamento’ que resgatava os PL-01/2003, 121/2007 e original 141/2012,
  • Sem debate com o CNS, gestores do SUS, militância ‘SUS’ e sociedade, é em curtíssimo prazo apresentada pela bancada da situação e aprovada, a inclemente PEC-358/2013, hoje EC-86/2015 que dispõe sobre a aplicação de 13,2% até 15% da Receita Corrente Líquida-RCL de 2016 a 2020, obriga a execução pelo MS das emendas parlamentares individuais impositivas(0,6% da RCL), retira o adicional referente ao Pré-Sal e exclui a reavaliação quinquenal constante da EC-29/2000, com piora substantiva do sub-financiamento federal do SUS a valores abaixo dos dispostos pela EC-29, o que constitucionalizou o sub-financiamento,
  • Aprovação da MP-619/2013 que estende a renúncia fiscal das contribuições sociais COFINS e PIS às empresas de planos privados de saúde,
  • Aprovação da MP-656/2014 que estende a entrada do capital estrangeiro ao mercado nacional da rede privada ambulatorial, hospitalar e laboratorial, além do mercado de planos privados já contemplado pela Lei 9656/1998,
  • Envio pelo Governo à Câmara dos Deputados, da PEC – 87/2015 (depois 04/2015 e no Senado 31/2016), que eleva a DRU de 20% para 30%, cria a DRE (estadual) e DRM (municipal) também com 30%, dobra a prorrogação de quatro para oito anos, e preserva a base de cálculo do financiamento do SUS nas três esferas,
  • Apresentação e tramitação no Senado da PEC – 143/2015, que cria a DRE, a DRM e eleva a DRU, DRE e DRM para 25%, além de dobrar a prorrogação de quatro para oito anos, preserva a base de cálculo do financiamento federal do SUS, mas atinge a do estadual e municipal,
  • Veto presidencial a artigo da LDO/2016, permitindo queda no orçamento do SUS de 2015 para 2016, estimada entre R$8 e 14 bilhões a depender dos critérios dos cálculos em andamento,
  • Aprovação no Congresso Nacional da EC – 95/2016 que reduz a correção anual do financiamento federal na área social, incluindo o SUS, zerando o crescimento real, ao substituir o piso vinculado à evolução da receita pública, pelo teto vinculado à inflação do ano anterior, cujo significado será abordado na última constatação/reflexão a seguir.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

*
*